quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Estiagem íntima refeita em flor e o amor disfarçado em MalvaRosa


Estiagem íntima refeita em flor e o amor disfarçado em MalvaRosa 

dedicado com imenso carinho a: Alice Stefânia, Bernardo Côrtes, Caio Lins, Cleide Mendes, Diego Borges, Eros Bittencourt, Fábio Miranda, João Vitor Morgado, Káshi Mello, Lucas Muniz, Maria Schramm, Michelli Santini, Ramayana Régis e Rita Cruz.


Foi de uma decisão tão unânime em que escapam quaisquer motivos plausíveis de compreensão a olho nu, foi do gesto de não mais poder calar ou ocultar, foi da entrega do que não se pode mais conter: disso tudo, estas palavras foram se organizando a cada movimento, rosto, verso de cada figura em cena como um processo natural, como fita métrica desenrolando por necessidade de uma medida. Mesmo sabendo dessas linhas como jogo tolo e mínimo, um metro incapaz de captar aquilo diferente e tão humano que acontece todas as vezes, e em livres instantes, no espetáculo MalvaRosa.
Mesmo não sendo dado a milagres, como explicar em um mundo de tanta desumanização, de tanto sentimento por conveniência, de tanta frustração por expectativas financeiras, de tanto desamor, de tanta relação virtual, de tanta poeira, um amor nascente em flor? Uma rosa louca brota em meio à secura das almas e se recusa a ser ornamento, mesmo podendo só sê-lo. Sabe que desde a leitura de Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa anunciava em louvor estético e literário a possibilidade de um amor, disfarçado em gêneros levemente mutáveis, no meio de uma trincheira sertaneja. Riobaldo e Diadorim marcavam o sinal de uma aprendizagem na escola nada exigente de uniformes.
Novas rosas poderiam vir quando quisessem e pagariam a conta. “Mesmo assim, a viúva acendeu o candeeiro. Viu-se por inteiro pela primeira vez.”. Newton Moreno tece em linhas poéticas uma cena do sorriso beatificado, puladora da cerca e amante em fogo
ardente de descoberta, numa sensibilidade do respeito entre as aleluias das labaredas de dois corpos de mulher.
As linhas daquela paixão, porém, precisavam sair das rachaduras chapadas e trazer também o cheiro de maresia. O poema que se encena em tragédia, comédia, drama épico, parece solicitar por sonatas e acordes de violino alguns corpos, algumas almas sensíveis e tão humanas ao ponto de serem capazes de organizar os significados e sentidos daquele tanto de coisa em espetáculo, em teatro.
O fantástico da arte é que, mesmo não podendo representar todo o mundo, ela pode trazer sua totalidade. Mesmo que muitos estejam à espera de uma obra artística redutora, a serviço de uma ideologia (certa ou equivocada, sem juízo de valor), o que MalvaRosa faz é muito mais complexo. O espetáculo propicia a experiência num lugar em que a plenitude da vida humana já quase não é mais possível. É política sem precisar ser, sem ser no tipo vulgar.
Oh chuva de Alice Bernardo Caio Cleide Diego Eros Fábio João Káshi Lucas Maria Michelli Ramayana Rita! Exatas gotas de corpos tão autênticos e próprios a se emprestar em melodias de seca, barro, cru e vazio repleto! A arma de comunicação capaz de derramar a sensibilidade do público. A verdade essencial de cada pedacinho de interpretação em poesia completa.
Um grande amor chovendo e dizendo do fluir do dia que desabrocha em flores do jardim de caixotes de madeira e redes rendadas. A força de duas almas, Zé ou Etevaldo e Maria ou “toda menina que enjoa da boneca é sinal de que o amor já chegou no coração”, que já não precisam de corpos delimitados sexualmente. Se ele é ela, sem bilola ou bilunga, se ela é ele, se Ramayana é Caio, se Bernardo é Cleide, se Káshi é violino, se João é luz de refletor, ou se Eros é Rita, não há diferença naquele amor bem cintado. Na mímica facial nos olhos: vozes, padres, velhas, Belzebu e delegados julgam,
apontam talvez por uma profunda ignorância, talvez pela falta de amor, talvez pela vergonha homofóbica.
Os pedaços de cera de vela louvam o Deus que criou e amou aquelas criaturas, mas alimentam o fogo de ruído oco purificador e condenador daquelas duas. O brilho de um olhar traidor impede o padre de reverter toda aquela dor, toda uma cultura de mulheres que não se conhecem de corpo e alma, de homens mudos e quase sem língua de expressão. Todavia, o cenário, a maquiagem e a música são personagens próprios da riqueza daquelas terras nordestinas cheias de fé e esperança de lágrimas solteiras, casadas, homohetero, brancasíndiasnegraspardas em renda, bordados e colaboração pela sobrevivência.
Há tantas vozes diferentes, tantos movimentos autorais, tantos corpos e personalidades permutadas, tanta coletividade, tanta cristandade, tanta heresia. Tudo numa coisa só, pela diversidade da vida entendida tão bem pelos outros seres. Diferença que o ser humano ainda não entende como presente e riqueza imensurável. Há tantos profissionais, tanto carinho convidativo! MalvaRosa!
MalvaRosa é o filete de água nascente no olhar agreste que seca as diferenças. É o sinal de uma chuva chegando ao sertão. É o amor capaz de vontade e força.

Gabriel Rodrigues Borges

6 comentários:

  1. estive no fitub sem muita expectativa porém quando vi este espetáculo me senti motivado e quis procurar sobre o grupo na internet. esta critica fala muito por nós que assistimos. parabéns ao grupo! abs

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  2. Olá Gilberto.
    É um enorme prazer saber que nosso trabalho o motivou.
    Obrigada pelo carinho.

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  3. Lindo o texto do Gabriel, Malva Rosa é isso tudo siiim. Um ótimo espetáculo, tão sensível, tão humano, envolvente e eloquente.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Nossa realmente o espetáculo Malva Rosa é de uma delicadeza e de muita intensidade, a história é muito comovente e o elenco também é muito bom estão todos de Parabéns!!!E concordo coma crítica do Gabriel Borges,acho que ele sintetizou em forma de um poema o quão maravilhoso é o Malava Rosa, só tenho elogios a fazer!!!
    Kênya Magalhães

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  6. Muito boa a crítica!
    A peça é de uma musicalidade e dinâmica indubitáveis;
    Além das belíssimas palavras de Gabriel Borges, que as faço de minhas;
    Apreço
    Júlia Horta

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